Inicialmente desejo dizer do equivoco do bispo D.Cappio por fazer greve-de-fome para pressionar o governo a mudar de posição num projeto já decididido. Acho que é justo o ditado
"ao bispo o que é do bispo"mas que isto não leve ao equívoco suicidade de matar-se por uma questão que ele considera nobre, que deve ser estudada , meditada e o mais óbvio me parece ser o seguinte: não me parece ter o bispo competência técnica para dizer ou não o que deve ser feito em favor de populações que serão beneficiadas pela transposição das águas. Entendi no que li a respeito que os beneficios e ganhos para imensas populações dependentes das tais águas serão maiores que as perdas. Isso mesmo. Haverá a longo prazo mais solução que problema, como hoje está. Considedrei de bom senso a medida do senhor bispo de suspender a greve de fome, coisa chocante que assustou aleigos e até membros sérios da igreja.
Vamos ao debate:
CARTA DE CRIRO GOMES PARA SABATELLA
20/12/2007
Letícia,
ando meio quieto por estes tempos, mas, ao ver você visitando o bispo em greve de fome no interior da Bahia, pensei que você deveria considerar algumas informações e reflexões. Poderia começar lhe falando de República, democracia, personalismo, messianismo… Mas, sendo você a pessoa especial que é, desnecessário. O projeto de integração de bacias do rio São Francisco aos rios secos do Nordeste setentrional atingiu, depois de muitos debates e alguns aperfeiçoamentos, uma forma em que é possível afirmar que, ao beneficiar 12 milhões de pessoas da região mais pobre do país, não prejudicará rigorosamente nenhuma pessoa, qualquer que seja o ponto de vista que se queira considerar.
Séria e bem intencionada como você é, Letícia, além de grande artista, peço-lhe paciência para ler os seguintes números: o rio São Francisco tem uma vazão média de 3.850 metros cúbicos por segundo (!) e sua vazão mínima é de 1.850 metros cúbicos por segundo (!). Isto mesmo, a cada segundo de relógio, o Rio despeja no mar este imenso volume de água.
O projeto de integração de bacia, equivocadamente chamado de transposição, pretende retirar do Rio no máximo 63 metros cúbicos por segundo. Na verdade, só se retirará este volume se o rio estiver botando uma cheia, o que acontece numa média de cada cinco anos. Este pequeno volume é suficiente para garantia do abastecimento humano de 12 milhões de pessoas.
O rio tem sido agredido há 500 anos. Só agora começou o programa de sua revitalização, e é o único rio brasileiro com um programa como este graças ao pacto político necessário para viabilizar o projeto de integração.
No semi-árido do Nordeste setentrional, onde fui criado, a disponibilidade segura de água hoje é de apenas cerca de 550 metros cúbicos por pessoa, por ano (!). E a sustentabilidade da vida humana pelos padrões da ONU é de que cada ser humano precisa de, no mínimo, 1.500 metros cúbicos de água por ano. Nosso povo lá, portanto, dispõe de apenas um terço da quantidade de água mínima necessária para sobreviver.
Não por acaso, creia, Letícia, é nesta região o endereço de origem de milhões de famílias partidas pela migração. Converse com os garçons, serventes de pedreiros ou com a maioria dos favelados do Rio e de São Paulo. Eles lhe darão testemunhos muito mais comoventes que o meu.
Tudo que estou lhe dizendo foi apurado em 4 anos de debates populares e discussões técnicas. Só na CNBB fui duas vezes debater o projeto. Apesar de convidado especialmente, o bispo Cappio não foi. Noutro debate por ele solicitado, depois da primeira greve de fome, no palácio do Planalto, ele também não foi. E, numa audiência com o presidente Lula, ele foi, mas disse ao presidente, depois de eu ter apresentado o projeto por mais de uma hora (ele calado o tempo inteiro), que não estava interessado em discutir o projeto, mas “um plano completo para o semi-árido”.
As coisas em relação a este assunto estão assim: muitos milhões de pessoas no semi-árido (vá lá ver agora o auge da estiagem) desejam ardorosamente este projeto,esperam por ele há séculos. Alguns poucos milhões concentrados nos estados ribeirinhos ao Rio não o querem. A maioria de muitos milhões de brasileiros fora da região está entre a perplexidade e a desinformação pura e simples. Como se deve proceder numa democracia republicana num caso como este?
O conflito de interesses é inerente a uma sociedade tão brutalmente desigual quanto a nossa. Só o amor aos ritos democráticos, a compaixão genuína para entender e respeitar as demandas de todos e procurar equacioná-las com inteligência, respeito, tolerância, diálogo e respeito às instituições coletivas nos salvarão da selvageria que já é grande demais entre nós.
Por mais nobres que sejam seus motivos - e são, no mínimo, equivocados -, o bispo Cappio não tem direito de fazer a Nação de refém de sua ameaça de suicídio. Qualquer vida é preciosa demais para ser usada como termo autoritário, personalista e messiânico de constrangimento à República e a suas legítimas instituições.
Proponho a você, se posso, Letícia: vá ao bispo Cappio, rogue a ele que suspenda seu ato unilateral e que venha, ou mande aquele que lhe aconselha no assunto, fazer um debate num local público do Rio ou de São Paulo.Imagine se um bispo a favor do projeto resolver entrar em greve de fome exigindo a pronta realização do projeto. Quem nós escolheríamos para morrer? Isto evidencia a necessidade urgente deste debate fraterno e respeitoso. Manda um abraço para os extraordinários e queridos Osmar Prado e Wagner Moura e, por favor, partilhe com eles esta cartinha. Patrícia tem meus telefones. Um beijo fraterno do Ciro Gomes
Ciro Gomes é deputado federal (PSB-CE) e foi ministro da Integração Nacional
Original em:
http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp?id=3043Carta-resposta de Sabatella pra Ciro Gomes:
Resposta de Letícia Sabatella a Ciro Gomes publicada no O GloboEscrito por
Imprensa em dezembro 23, 2007
LETÍCIA SABATELLA
Caro deputado Ciro Gomes, Antes de visitar frei Luiz Cappio em Sobradinho, tinha conhecimento desse projeto da transposição de águas do Rio São Francisco, através da imprensa, e de duas conferências sobre o meio ambiente, das quais participei a convite de minha querida amiga, a ministra Marina Silva. Há alguns anos, quieta também, venho escutando pontos de vista diversos de ambientalistas, dos movimentos sociais, de nossa ministra do Meio Ambiente e refletindo junto com o Movimento Humanos Direitos (MHuD), do qual faço parte.
Acompanho a luta de povos indígenas e ribeirinhos, sempre tão ameaçados por projetos de grande porte, que visam a destinar grande poder para um pequeno grupo em troca de tanto prejuízo para esses povos, ao nosso patrimônio social, ambiental e cultural.
Acredito que devam existir benefícios com a transposição, mas pergunto, deputado, quem realmente se beneficiará com esta obra: o povo necessitado do semi-árido ou as grandes irrigações agrícolas e indústrias siderúrgicas? Afinal, a maior parte da água (bem comum do povo brasileiro) servirá para a produção agrícola e industrial de exportação e apenas 4% dessa água serão destinados ao consumo humano.
Sabendo do desgaste que historicamente vem sofrendo o rio, necessitado de efetiva revitalização, sabendo do custo elevado de uma obra que atravessará alguns decênios até ser concluída e em se tratando de interferir tão bruscamente no patrimônio ambiental, utilizando recursos públicos, por que razão, em sendo sua excelência deputado federal, este projeto não foi ampla e especificamente discutido e votado no Congresso? Por qual motivo essa obra tão “democrática” foi imposta como a única solução para resolver a questão da seca no semi-árido, quando propostas alternativas, que descentralizam o poder sobre as águas, não foram levadas em consideração? No dia 19 de dezembro de 2007, o que presenciei na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi a insensibilidade do Poder Judiciário, a intransigência do Poder Executivo, e a omissão do Congresso Nacional. Será que não precisamos mesmo falar mais sobre democracia republicana, representativa? Ou melhor, praticar mais? Quanto ao gesto de frei Luiz, sinto que o senhor não age com justiça, quando não reconhece na ação do frei uma profunda nobreza. Sinto muito que o senhor ainda insista em desqualificálo. Por tê-lo conhecido e com ele conversado, participado de sua missa na Capela de São Francisco junto aos pobres, pude testemunhar sua alma amorosa e plena de compaixão humana, pastor de uma Igreja que mobiliza e não anestesia, que ajuda a conscientizar e formar cidadãos. Ele vive há mais de trinta anos entre ribeirinhos, indígenas, trabalhadores rurais, quilombolas e é por eles querido e respeitado.
Conhece profundamente as alternativas propostas pelos movimentos sociais, compostos por técnicos e estudiosos que há muitos anos pesquisam o semi-árido. Uma dessas alternativas foi proposta pela Agência Nacional de Águas, com o Atlas do Nordeste, que foi objeto de seu debate com Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, cuja honestidade intelectual o senhor publicamente enalteceu em seminário realizado na UFF. Ele mostrou que o projeto da ANA custaria R$ 3,3 bilhões, metade do custo da transposição, beneficiando com água potável 34 milhões de pessoas, abarcando nove estados: então, por que o governo não levou em consideração esta opção mais barata e mais abrangente? Infelizmente, caro deputado, Dom Cappio não exagerou quando decidiu fazer seu jejum e fortalecer suas orações para chamar a atenção de todos à realidade do povo nordestino. O governo do presidente Lula optou por um modelo de desenvolvimento neocolonial que, dando continuidade à tradição de realizar grandes obras para marcar seus mandatos, sacrifica o povo com o custo de seus empreendimentos, enquanto o que esperávamos deste governo era a prática de uma verdadeira democracia.
Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2007
Letícia Sabatella
Carta de Elio Gaspari no Globo
Num país em que posições radicais são uma raridade, a atriz Letícia Sabatella chamou a atenção com sua atitude recente em relação a transposição do São Francisco. Elio Gaspari faz uma singela homenagem à atriz na sua coluna de hoje da Folha. Ele repete uma história do presidente Lula que é a cara do Nosso Guia. Em 1980, Lula fez uma greve de fome quando estava preso e foi flagrado por um colega chupando balas. Metamorfose ambulante é isso aí. (Beto)
Letícia Sabatella fez bem ao Natal
Vive-se melhor enquanto houver gente disposta a ir para a rua sustentando aquilo em que acredita
ENTRAR NO Natal pensando na solidariedade que Letícia Sabatella deu ao bispo Luiz Cappio faz bem à alma. Nem tanto pelas razões que a levaram ao sertão baiano e a Brasília. Questão controversa, a transposição do São Francisco tem defensores e críticos cujos pontos de vista merecem atenção e respeito. O que enobrece os gestos de Sabatella é o simples exercício de suas convicções.Suas aparições podem ter provocado algum desconforto, sobretudo em pessoas que pensam de maneira diferente. Se ela estivesse numa campanha publicitária de condomínios ou de biquínis, seria o jogo jogado. Como participa de um movimento político (ao qual sua carreira nada deve), deveria ficar calada.Numa época de marquetagem de celebridades, essa atriz (35 anos, uma filha) é ave rara. Tem seu trabalho e suas opiniões, mas, fora delas, é uma perfeita anônima. Quem a conhece atesta que são duas as suas marcas: o profissionalismo e a inflexibilidade de opiniões políticas.Está mais para o estilo da inglesa Vanessa Redgrave do que para a versão anos 60 de Jane Fonda, que fez fama posando numa bateria antiaérea norte-vietnamita e está pedindo desculpas até hoje.Quando Nosso Guia elabora a teoria da metamorfose ambulante, acaba-se confundindo convicção com excentricidade. Lula revelou que "eu sei o que é greve de fome, dá uma fome danada". De fato, em 1980, quando estava preso ele liderou uma greve de fome na cela. Tinha umas balas escondidas e foi flagrado por um colega. Posteriormente, apoiou a greve dos bandidos que seqüestraram o empresário Abilio Diniz.É irrelevante concordar com as opiniões de Letícia Sabatella para poder apreciar as suas atitudes, sempre calmas, educadas. A distância que estabeleceu na resposta à carta aberta do deputado Ciro Gomes é um exemplo disso. (Ambas foram publicadas em "O Globo"). Vive-se melhor enquanto houver gente disposta a ir ao sertão do Nordeste ou à praça do bairro para sustentar aquilo em que acredita.
Carta de Leonardo Boff sobre D.Cappio
Estou enviando este material como reflexão sobre a questão do bispo Dom Cappio, meu antigo aluno de teologia. Queiram divulgá-lo caso acharem conveniente.Um abraço lboff Por uma justiça maiorMuito de nós estamos acabrunhados com o resultado do Suipremo Tribunal Federal concedendo campo livre para o governo implementar a transposição do rio São Francisco. O debate naquela corte suprema foi mal colocado. A questão central não era de ecologia ambiental mas de ecologia social. Não se tratava apenas de decidir se o megaprojeto do governo implicava impactos ambientais danosos, coisa que o IBAMA, numa decisão discutível, garantiu não haver. O que se tratava acima de tudo era de ecologia social: a quem beneficia socialmente o faraonismo daquela projeto governamental? Aos sedentos do semi-árido ou ao agronegócio e às indústrias? Os dados falam por si: cerca de 75% da água se destina ao agronegócio, 20% às indústrias e somente 5% à população sedenta. Aqui se dá o confronto de duas posições: a do governo e a do bispo Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra (BA). O governo busca um crescimento que, segundo os dados cima referidos, atende primeiramente os interesses dos poderosos e secundariamente as necessidades do povo sofredor, o que configura falta de equidade. Esta posição é chamada de modernização conservadora, teórica e práticamente superada. O bispo Dom Capppio encarna uma postura ética dando centralidade ao social e à vida, especialmente dos milhões de condenados e ofendidos do semi-árido com os quais ele trabalha há mais de 20 anos. Em função deste projeto social que prioriza o povo e a vida e que não nega outros usos da água, há de se ordenar a transposição do rio São Francisco. A justiça legal consagrou o projeto de crescimento do governo. Mas a justiça não é tudo numa sociedade, especialmente como a nossa, marcada por profundas desigualdades e conflitos de interesses que debilitam fortemente a nossa democracia.O que sustenta a posição do bispo é outro tipo de justiça, aquela originária que antecede à justiça legal, justiça que garante o direito da vida, especialmente daqueles condenados a terem menos vida e por isso a morrerem antes do tempo. A larga tradição da ética cristã, racionalmente fundada em Aritóteles e em Santo Tomás de Aquino afirma aquela justiça originária e alimenta ainda hoje modernos projetos de ética mundial. Ela sustenta que acima da justiça está o amor à humanidade e a todos os seres. Lamentavelmente, não foi isso que se ouviu no arrazoado dos ministros do Supremo Tribunal Federal.O amor ao próximo e ao sofredor é a regra de ouro, a suprema norma da conduta verdadeiramente humana porque abre desinteressadamente o ser humano ao outro a ponto de dar a própria vida para que ele também tenha vida, como o está fazendo o bispo Dom Cappio, figura de eminente santidade pessoal e de incondicional amor aos deserdados do vale do São Francisco. Esta é a justiça maior de que fala Jesus, porque tributa amor e respeito Àquele que se esconde atrás do outro que é o Grande Outro, Deus. O povo brasileiro em sua profunda religiosidade é sensível a esse argumento.Para entender a posição e a atitude profética do bispo, precisamos compreender este tipo de fundamentação. É perversa a tentativa de desqualificar sua figura considerando-o autoritário e falto de base popular. Ele está ancorado nos milhões que geralmente não são ouvidos porque são tidos por incuravelmente ignorantes, zeros econômicos e óleo queimado. Mas eles são portadores de um saber de experiências feito, construido na convivência com o semi-árido e no amor ao rio que chamam com carinho de Velho Chico.O compromisso de Dom Cappio continua, secundado por todos aqueles que até agora o acompanharam, especialmente, os movimentos populares e nomes notáveis da cena nacional e internacional.Se ele, em consequência de seu gesto, vier a falecer, a transposição poderá ser feita, pois o governo dispõe de todos os meios, militares, legais, técnicos e econômicos. Mas será a transposição da maldição.O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por tudo o que representa, não merece carregar esta pecha pelos séculos afora.
Leonardo Boff /teólogo